Caseiro resgatado aos 69 anos em condições análogas à escravidão deve ser indenizado

A 4ª Turma do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região reconheceu ser devida a indenização por danos morais a um caseiro que trabalhou por 11 anos em condições análogas à escravidão em uma propriedade rural.

Por unanimidade, os magistrados confirmaram a reparação por danos morais de R$ 70 mil fixada pelo juiz André Vasconcellos Vieira, da Vara do Trabalho de Santa Vitória do Palmar. Somadas às demais verbas relativas a salários, férias, FGTS e outras parcelas não pagas, o valor provisório da condenação é de R$ 400 mil.

Resgatado pela polícia e auditores fiscais do Trabalho em junho de 2022, aos 69 anos, o homem não tinha condições de saúde para fazer as tarefas para as quais fora contratado: cuidar de animais, cozinhar para os demais empregados e serviços gerais na cabanha. Tinha uma lesão grave na perna, sem tratamento, resultante da agressão por uma porca.

Documentos e fotos comprovaram o trabalho não remunerado e as precárias condições de moradia. O pagamento de R$ 400 foi feito por apenas dois anos e no restante do período não houve qualquer remuneração.

Ele residia em um pequeno imóvel com quarto e cozinha, com problemas no forro e na fiação elétrica. O banheiro, sem instalações sanitárias e sem chuveiro quente, ficava fora da casa. Também não havia água potável, alimentos aptos para consumo, roupas e cobertores para o trabalhador.

Testemunhas, tanto na ação penal quanto na trabalhista, confirmaram que o homem já não tinha condições para o trabalho e nem para se manter, preparando a própria comida. Segundo uma afilhada, três anos antes do resgate, a família tentou retirá-lo da cabanha, mas o proprietário não autorizou.

Na ação penal, ainda houve a confirmação de que a família dona da fazenda retirava um benefício previdenciário concedido ao idoso a cada dois meses. Com metade do dinheiro, compravam alimentos que eram fornecidos ao caseiro e a outra metade ficava com a esposa do fazendeiro. O empregador foi condenado pela prática do crime do artigo 149 do Código Penal (redução à condição análoga à de escravo).

A defesa alegou que a relação era de amizade e não de trabalho, e que o idoso, amigo do avô do proprietário da fazenda (já falecido), morava no local de favor.

Com base nas provas e condições em que o idoso foi encontrado, o magistrado considerou a “situação gravíssima” e cruel a forma como os fatos se desencadearam.

“Resta evidente que o trabalhador estava reduzido à condição análoga à de escravo, sujeito a condições exaustivas de trabalho para a sua idade e condição de saúde, sem receber salários e ainda solapado de parte de seu benefício previdenciário pelo réu, além das condições absolutamente degradantes de moradia e total desamparo no período de doença”, afirmou o juiz.

As partes apresentaram recursos ao TRT-RS em relação a diferentes itens. A Turma manteve o entendimento de primeiro grau quanto ao trabalho análogo à escravidão, bem como o dever de indenizar.

Para o relator do acórdão, desembargador André Reverbel Fernandes, as condições de trabalho e moradia a que o autor foi submetido demonstram a existência de trabalho análogo à escravidão, conforme o artigo 149 do Código Penal e a Portaria 671/2021 do Ministério do Trabalho.

“O trabalho em condições análogas à de escravo retira do trabalhador a sua dignidade e implica violação a uma série de direitos fundamentais, tais como liberdade, moradia, alimentação, higiene, saúde e segurança no trabalho, sendo devida a indenização por danos morais”, concluiu o magistrado.

Os desembargadores Ana Luiza Heineck Kruse e João Paulo Lucena acompanharam o relator. A Turma baseou a decisão no Protocolo para Atuação e Julgamento com Perspectiva de Enfrentamento do Trabalho Escravo Contemporâneo, elaborado pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST) em conjunto com o Conselho Superior da Justiça do Trabalho (CSJT). Não houve recurso da decisão.

Protocolo para Atuação e Julgamento com Perspectiva de Enfrentamento do Trabalho Escravo Contemporâneo, elaborado pelo TST em conjunto com o CSJT:

O Protocolo conceitua o trabalho forçado como a submissão do trabalhador à jornada extraordinária incompatível com a capacidade psicofisiológica e o pagamento de valores irrisórios pelo tempo de trabalho. Está caracterizada também a atividade desgastante, em ambientes inóspitos e com ausência de proteção, bem como com a supressão não eventual do descanso semanal remunerado e do gozo de férias.

A jornada exaustiva não está ligada exclusivamente ao critério objetivo do número de horas de trabalho, mas, também, em relação à intensidade com a qual este trabalho é realizado, especialmente quando a pessoa desenvolve atividades repetitivas, em ambientes insalubres e sem a observância dos intervalos, pausas e outros procedimentos necessários para a recuperação física e mental.

Nesse contexto, ainda que a duração do trabalho ocorra em tempo considerado lícito, sob o ponto de vista estritamente normativo, a jornada exaustiva estará configurada se ficar constatada a submissão da pessoa a um esforço excessivo ou a uma sobrecarga de trabalho que o leve ao limite de sua capacidade física e mental. A jornada exaustiva, em regra, está ligada ao labor realizado em atividades desgastantes, ambientes inóspitos e com ausência de proteção.

O trabalho em condições degradantes é caracterizado pela ausência de direitos mínimos relacionados à saúde e à segurança do(a) trabalhador(a), com exposição de sua integridade física e psíquica, bem como pela inexistência de um rol mínimo de direitos, como alojamento, água, condições sanitárias e alimentação adequados, não pagamento de salários, submissão a tratamentos desumanos, todos praticados com clara violação da dignidade.

Fonte: TRT/RS

Compartilhe esse artigo

Precisa de Assistência Jurídica?

Entre em contato conosco para discutir como podemos auxiliar você. 

Últimos conteúdos

STJ estende direito real de habitação a herdeiro vulnerável com esquizofrenia: Proteção à moradia prevalece

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) proferiu uma decisão histórica ao estender o direito real de habitação a um herdeiro vulnerável. O colegiado decidiu que um homem

noticia

Clube Atlético Catarinense de futebol masculino pode ter que mudar de nome por decisão judicial

Uma decisão da 4ª Vara Cível da comarca de São José (SC) determinou que o Clube Atlético Catarinense, time masculino com sede na Grande Florianópolis que já disputou a Série

noticia

Reconhecimento de filiação socioafetiva é diferente de adoção por avós

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) cassou uma sentença da Comarca de Diamantina e determinou o prosseguimento de uma ação de reconhecimento de multiparentalidade por vínculo socioafetivo. A

noticia

Trabalhador apalpado por supervisor durante ‘festa da firma’ deve ser indenizado

O Tribunal Regional do Trabalho da 12ª Região (TRT-SC) confirmou a condenação de uma empresa por danos morais a um técnico de internet que foi importunado sexualmente por seu supervisor.

noticia

Parte do cônjuge não devedor é calculada sobre o valor da avaliação do imóvel leiloado

A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por unanimidade, que quando um cônjuge que não é devedor exerce o direito de preferência para arrematar um bem indivisível

noticia

Empresas pesqueiras de SC são condenadas a treinar pescadores para emergências no mar

O Tribunal Superior do Trabalho (TST) deu provimento à Ação Civil Pública do MPT e condenou duas empresas pesqueiras de Santa Catarina a implementar um plano de treinamentos de emergência

noticia

Herdeiros não respondem por dívidas do falecido antes da abertura do inventário

A 6ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) negou, por unanimidade, o recurso de um banco que tentava incluir os herdeiros de um executado no polo passivo

noticia

TJSC entrega títulos do Programa Lar Legal e promove ordenamento urbano em Passo de Torres

O Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJSC) celebrou mais uma conquista do Programa Lar Legal, entregando 43 títulos de propriedade para famílias da comunidade Rosa do Mar, em Passo

noticia

Devolução de valores por distrato: STJ afasta corretora da responsabilidade solidária com construtora

Em um precedente importante para o mercado imobiliário, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) definiu que a corretora de imóveis não responde, de forma solidária, pela restituição

noticia